olhos nos olhos - parte 2
A cama dum hospital é companhia sofredora.
Durante todos estes anos de vida, tive a sorte de não conhecer a solidão amarga dessa companhia.
E quando aconteceu aquele dia de Novembro, antevéspera do ano 2000, também essa amargura não se manifestava muito relevante, pois a intervenção a que iria ser sujeito no Hospital da CUF era quase de rotina, sem qualquer risco e de curta duração.
A normalidade daquele dia denunciava, também, uma calma de espírito perfeitamente adequada ás circunstâncias.
Naquele quarto do hospital quase nunca estive sozinho. Entrei já à tardinha, a noite a espreitar, e sem novidades porque era já a segunda vez naquele ano de 1998.
O quarto era muito bom e não fossem os objectos e o branco vestuário do pessoal, e quase me esquecia de estar ali internado para uma intervenção cirúrgica.
Mas o silêncio "fala" sempre para dentro de nós. Em todas as circunstâncias e em todos os momentos o silêncio tem sempre um significado próprio, e "remexe" o nosso subconsciente à procura das mais diversas velharias. Basta que o sintamos e aceitemos. O silêncio é bom e também é "mau". Depende de como destapamos esse nosso subconsciente e o deixamos espraiar nesse mesmo silêncio.
Quando, por fim, adormeci, devo "ter andado" por sítios calmos e belos, porque a manhã encontrou-me bem disposto e preparado para um dia onde muita coisa iria acontecer...
Já tinha feito todos os exames necessários à operação, como é usual naqueles casos. Mas naquela tarde o médico avisara que me queria observar nas urgências, onde estava de serviço.
Fui levado ao rés-do-chão.
Deitei-me na marquesa e ele disse-me: "Vou tentar resolver isto com uma pequena cirurgia, pra ver se evitamos a operação!"
A enfermeira preparou a anestesia indicada pelo médico e ministrou-ma no rabo.
Após alguns instantes, voltou a verificar que as partes continuavam sensíveis, sinal de que a anestesia não produzira o efeito desejado. Deu nova ordem e outra seringa foi preparada e injectada no corpo. Fui respondendo às perguntas e confirmei que não sentia já aquela parte do corpo. Médico e enfermeiras trabalharam durante não sei quantos minutos, sempre em conversa permanente, até que, afastando-se, ele avisou, descalçando as luvas de borracha:
"Não! Não é possível! Temos mesmo que operar!..."
Eu fiz um gesto de desagrado mas de rápida resignação. Continuei estendido de barriga para cima, enquanto a enfermeira retirava toda aquela aparelhagem.
Poucos segundos haviam decorrido. Senti uma espécie de tontura (que já conhecera em outras alturas e indiciava um desmaio) e disse para a enfermeira: "Não estou a sentir-me bem. Tenho a impressão que vou desmaiar!..."
A enfermeira olhou-me, algo assustada, disse qualquer coisa relacionada com a tensão arterial, apareceu com o aparelho, apertou-me o braço, mediu a tensão, disse mais qualquer coisa e chamou o médico em voz alta...
A realidade do mundo à minha volta desapareceu num ápice, algo escuro apoderou-se do meu consciente, e um remoinho desagradável e áspero subiu-me ao cérebro. O pensamento deixou de funcionar, os cinco sentidos foram-se totalmente, o meu “eu” deixou de estar ali.
Recordando, agora, os factos de então, poderei afirmar que "parti" para outro lugar, onde não havia enfermeiras, nem médico, nem hospital. Era um lugar escuro, sem contornos nem paisagens à vista.
E porque isto está fresco na minha memória, tentarei defini-lo com mais duas ou três frases.
Poderei afirmar que não era um lugar deste mundo, e disso eu tive a percepção imediata. Poderei afirmar que, racionalmente, terei de compará-lo com uma arena, em que essa arena era "eu mesmo". Ou talvez um palco, pronto a acolher as cenas de uma peça. Sim, talvez esta comparação esteja mais próxima da realidade física. Mas não havia espectadores, nem luzes, nem cadeiras, nem um juiz, nem testemunhas. Não havia nada, de físico e concreto.
Afinal, como devo definir o que se passou? Para onde fui eu? Que lugar era aquele?
É difícil explicar aquele espaço com palavras inventadas pelo homem, assim como é difícil explicar todos os acontecimentos posteriores com palavras, sentimentos e emoções, tais como os conhecemos. Poderei afirmar, somente, que eu estava num lugar e a viver "coisas" que não faziam parte deste mundo, e não existem nem palavras nem sentimentos que possam explicar, com exactidão, aquilo que iria passar-se longe dum médico, de três enfermeiras e de quatro ou cinco familiares que esperavam no corredor vizinho.
19 Comentários:
que bonito :D
Volta sempre serás bem vindo
Beijinhos
Para muitas coisas não existem palavras no vocabulário. Emocionaste-me. Beijinhos.
bela e estranha viagem em que pareces ser participante e espectador
gostei imenso
bom fim de semna
Estou arrepiada...talvez por ter tido uma experiência muito semelhante á que descreves depois do nascimento da minha filha, um momento em que, devido a várias complicações graves, eu estive também num lugar assim...
Talvez partilhe no texto do aniversário dela...não sei...
Beijos atordoados
Essa tua vivência já a tinha lido na tua página,uns podem duvidar outros acreditar... É preciso estar preparado para todo otipo de opiniões. Eu sou uma pessoa que acredito que nada acontece por acaso e já fui espectadora de coisas difíceis de explicar, por isso estou contigo nesta tua partilha. Bom Fim de Semana, Bj e
FICA BEM!
Há algo que talvez não estejamos preparados para saber com exactidão.
Acompanho a tua experiência com carinho e emoção.
Tenho andado um pouco afastada mas não me esqueço dos amigos.
grande abraço
Sabe o que sobra no silêncio?
No silêncio sobra VOCÊ - o EU!
E como isso é para cada uma, varia. Mas nunca deixa de ser.
Beijos, querido.
Obrigada por partilhar este momento, Amaral.
Beijinho
Olá querido Amaral, grata por partilhares conosco esse momento da tua vida...
Tenho um momento da minha vida muito idêntico.
Em 1997, estando eu no patamar das escadas de um 1ª. andar, conversando com a minha afilhada, fui recuando, sem me aperceber... estava de sapatos de sato alto, o que defícultou quando perco o equilíbrio... desço as escadas de cabeça a frete do corpo e bato na parede há altura de 1 metro...
No primeiro momento a dor foi forte, depois abri os olhos e não via, só ouvia gritos de que eu estava morta...
Tudo isto eu lembro como se fosse hoje!
O meu afilhado que é médico, só gritava para eu não disistir de viver... Eu fazia um esforço e as dores eram muitas... quando eu deixava-me levar, sentia como se estivesse no Paraíso, lindo via muitas flores e só doçura...
Qundo ele me abanava enquanto esperavam a ambulância, eu voltava ao estado de consciência e as dores voltavam...
Lá me safei só com uma dúzia de pontos na cabeça... Eu muita vez entre amigos conto o que me aconteceu e a felicidade que eu sentia... Quando estava do outro lado, não sei onde!!!
Querido Amaral, desculpa o texto ser grande, mas senti vontade de te contar este episódio da minha vida...
Votos de um bom fim de semana.
Beijinhos de carinho,
Fernandinha
Julgo já ter lido este texto, ou um semelhante , na tua página. Impressionei-me quando a li pela primeira vez, impressionei-me agora. A forma como a relatas é clara e sincera.
Também eu gostaria de saber que lugar é esse para onde vamos, como é o depois. Fico à espera da continuação.
Um beijo, Amaral.
Impressionou-me o teu texto...lembrou-me uma experiência que tive, em Julho do ano passado, sobre a qual nunca quis pensar mt e menos ainda falar...Bom, e tb não é hoje:)
beijo para ti
obgda pela partilha
jocas maradas...sempre
Ai, ai, ai... e eu que vou pá cirurgia depois de amanhã entro e ós pois...Mas nem vou pensar nisso e claro que espero lembrar-me de onde andei naqueles momentos anestesiada... Não é nada parecido com a experiência que tiveste, mas quem sabe...
É bom ir ao ladod e lá, assim ficamos a saber que não precisamos de ter medo de algum dia ir para lá, de vez...
Beijinhos pa ti.
AMARAL:
Aqui...
é o meu novo espaço na blogosfera:
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Beijo.
Bom domingo.
Amaral, há experiências únicas, abençoadas. Só quem passa por momentos como tu passaste, sabe dar valor à vida e pode desvendar alguns dos mistérios que nos circunda.
Tu foste abençoado, talvez não tenha sido por acaso. És uma pessoa com um coração ENORME, bondoso, sensível. Nunca mais esquecerei aquele episódio que relataste de sentires a tua mãe ou o teu pai (não me lembro bem) junto de ti. Nem todas as pessoas possuem estas bençãos.
Deus escolhe, Ele sabe a razão.
Emocionaste-me com as tuas palavras, eu senti mesmo um arrepio, algo estranho quando te li.
É tão bom regressar ao teu cantinho!
Um abraço de estrelinhas*
Fanny
Amigo passei para te desejar um belo domingo e dizer-te...
Não caminhes á minha frente,posso não saber seguir-te, mas também não caminhes atráz de mim, posso não saber guiar-te.
Mas caminha a meu lado e, sê apenas meu amigo.
Beijinho prateado com carinho
SOL
Sentindo cada palavra...assimilando todo o seu conteudo...
Arrepiada ...
Abraço-te...
(*)
Sei bem do que falas... para que tenhas uma ideia de como sei... posso dizer-te que sou em conjunto, hipertensa e asmática... as luzes e a tal arena na qual assumo um papel principal são muitas vezes o lugar onde a minha mente se refugia à minha revelia.
Sem palavras, apenas com a certeza que confio e creio na transparência do que escreves. :)
Bjinho Amaral
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