Lisboa,

quarta-feira, abril 09, 2008

olhos nos olhos - parte 5


O regressar dum desmaio é, por regra, e para mim, um remoinho indesejável que nos sobe ao cérebro, acompanhado por um mal-estar decrescente, à medida que as coisas, pessoas e vozes se tornam audíveis e, pouco a pouco, percebíveis. Foi assim também por ocasião duma anestesia geral, e penso, por vezes, como será a "entrada" dum recém-nascido no mundo terreno, aquando da sua separação do leito materno.
Nascer para esta vida ou deixá-la definitivamente tem as suas analogias e os seus pontos comuns. Como dizem certos pensadores, é com o nascimento para este mundo que o pequenino ser humano perde a liberdade e o entendimento pleno e universal; partir desta vida é como regressar à fase original e ver abrir-se-lhe todo o conhecimento e poder espiritual calcado e adormecido, durante anos, num corpo terreno.
Quando, deitado na marquesa, comecei a entender que estava a recuperar dum desmaio, assaltou-me uma sofreguidão e uma ansiedade muito fortes, misturadas com o súbito receio de ir esquecer a experiência que acabara de viver. Então, toda a minha mente, toda a minha força interior canalizou os cinco sentidos para um propósito vital: NÃO ESQUECER!

Recordo perfeitamente a ânsia desmesurada que punha na frase repetida vezes sem conta, perante os olhares atónitos do médico e enfermeiras: "Eu não quero esquecer! Eu não quero esquecer!". Fechava as mãos com força, unia simultaneamente todos os meus sentidos, e repeti, repeti aquela frase, vezes sem conta.
Todas as cenas acabadas de "viver" estavam frescas, muito claras na minha memória, e todas as sensações permaneceram intactas nos momentos que se seguiram. As enfermeiras procuravam acalmar-me, sentaram-me na marquesa, e eu "verifiquei" que uma falsa-tontura me perturbava o equilíbrio. O médico-cirurgião apercebeu-se do facto, e iniciou uma série de perguntas pessoais, às quais eu fui respondendo, com um misto de ansiedade e satisfação. Porquê? Muito simples: a "tontura" que sentia estar a provocar-me o desequilíbrio mental evidenciou-se, a pouco e pouco, como um facto perturbador novo e intrinsecamente familiar. Uma força estranha dera início a um estranho "bailado", num "medir de forças" provocante e abertamente intencional. Responder acertadamente às perguntas do médico significavam os primeiros sintomas que a força "que me puxava" poderia ceder a qualquer momento.
"- Quer um pouco de água?" - tentou uma das enfermeiras.
Eu fiz que sim com a cabeça, mas interrompi-lhe o gesto de me colocar o copo entre os lábios. Quiz ser eu a fazê -lo! A primeira tentativa resultou em parte, mas logo as forças cederam, e eu mantive o copo seguro entre as mãos, com os braços caídos sobre as pernas. "Eu vou conseguir!..." prometia, com o resto da força interior que advinha da luta que travava com a "tontura" que me desafiava a posse plena do meu equilíbrio mental. O consciente balanceava entre a realidade visual das coisas que ansiava "agarrar" e uma agitação crepitante que prenunciava outra espécie de desmaio.

Na prática, a cena, agora relembrada, adquirira o lado caricato dum impasse falsamente comparável à recuperação banal dum desmaio. Mas naquele momento exacto eu tinha a certeza de uma coisa: "algo" me puxava "para lá", e eu deitava mão a tudo para "agarrar" o lado "de cá". Perder os sentidos, naquela altura, significava o regressar ao palco do sofrimento por que passara havia momentos. Manter-me acordado e consciente era uma necessidade extrema, por que tinha de lutar, com todas as minhas forças.
Eu agarrava as mãos das enfermeiras, como tábua de salvação e clamava ajuda para, em simultâneo, tentar desfazer os elos que me prendiam àquela "força invisível", mas a batalha tornou-se temporalmente prolongada.
E então, uma fase nova tomou forma diferente, durante aquela "falsa recuperação " do mero desmaio.
A consciência e a inconsciência fundiram-se factualmente e, soube depois, o médico-cirurgião apanhava o susto da sua vida... Da consciência à inconsciência distava uma fronteira, presa debilmente por um fio. Como se entre o "cá" e o "lá", eu andasse ao arbítrio dum mísero empurrão. Eu ia e vinha! Quando "ia", o tempo "dava" para inquirir sobre coisas como o Universo, a existência de Deus, o regressar à vida na Terra... Quando "voltava", assaltava-me o desejo enorme de me agarrar a tudo o que era palpável, num louco receio de voltar a reviver a experiência anterior.

Como podem factos contados com estas palavras merecer credibilidade? E que palavras ou adjectivos ou até parábolas ou elementos comparativos ajudariam a tornar mais racional situações que a razão relutantemente teima em não entender?
De novo esbarro com uma total falta de argumentos convincentes.
Pode a imaginação possuir arte e engenho para "encenar" na nossa mente artimanhas deste tipo? E pode um cérebro deixar-se "invadir" por "criações" tão pormenorizadas e ricas de conteúdo?



9 Comentários:

At abril 09, 2008 3:07 da tarde, Blogger PoesiaMGD diz...

Uma boa prosa!
Deixo um convite:

http://www.escritartes.com/forum/index.php?referredby=3

m abraço

 
At abril 09, 2008 5:05 da tarde, Blogger Jonice diz...

Minha credibilidade neste relato não é sequer arranhada, Amaral.

Conheces o livro Mãos De Luz, da Dra. Barbara Ann Brennan? Penso que talvez gostasses de ler sobre um rapaz, um senhor, não lembro... enfim, ele viveu alguma coisa muito semelhante a isto tudo que nos tens contado estes dias.

Beijinhos

 
At abril 10, 2008 12:34 da manhã, Blogger Unknown diz...

Amaral, obrigado por te ler, por ao ler-te, voltar a saber que ELE existe, e isso é bom demais. Um abraço.
Eduardo Aleixo

 
At abril 10, 2008 6:32 da manhã, Blogger Menina do Rio diz...

Amaral, eu tive que ler os 5 capitulos para poder assimilar o ocorrido. Já li muitas histórias em que casos semelhantes acontecem, inclusive já estive do lado de lá qd bebê (isso contado por meus pais). Acredito que o desmaio tenha sido só o método de passagem entre os dois mundos e que a "inquisição era entre tu e tu mesmo pois somos nossos juízes e a arena é o tribunal. É muito interessante sabermos que existem os dois lados de nossa consciência que um dia se enfrentarão num julgamento dos nossos atos.

Um beijo pra ti

 
At abril 10, 2008 10:13 da manhã, Blogger Isabel Filipe diz...

Olá Amaral,

Acabei de ler os teus 5 artigos sobre este assunto...

estou sem palavras e arrepiada ... não que seja um tema desconhecido para mim ... simplesmente nunca tinha lido nada escrito por alguém que eu conhecesse (e acho que ao fim destes anos podemos dizer que já nos conhecemos um pouqinho...)

a tua descrição do desmaio é perfeita ... conheço bem a sensação do acordar do desmaio (acontece-me muito) ... mas nada mais que isso ...

só te posso dizer OBRIGADA pela partilha desta tua experiência ...

foi maravilhoso ler-te ...

beijinhos

 
At abril 10, 2008 11:14 da manhã, Blogger Paula Raposo diz...

Obrigada por esta partilha, que tenho vindo a ler diariamente. Beijos.

 
At abril 10, 2008 1:40 da tarde, Blogger Carla diz...

continuo a acompanhar esta tua maravilhosa descrição...para dizer que merecem toda a minha credibilidade e que acho esta descrição feita "olhos nos olhos" uma pérola preciosa...obrigada por a partulhar connosco

 
At abril 13, 2008 10:45 da tarde, Blogger Um Momento diz...

Pode sim Amaral...
Eu bem tento comentar-te...mas as palavras escasseiam...
Leio-te...releio-te e acredita... vivo intensamente estes momentos...
Sinto um aperto aqui... no peito...

Abraço-te Amaral...com imenso carinho!

(*)

 
At maio 12, 2008 4:24 da tarde, Blogger mitro diz...

O testemunho mais verdadeiro é sempre o nosso!

(Afinal, nós acreditamos nele!:-))

 

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