Ao som da voz de Paco Bandeira, vou passando a ferro umas roupinhas, enquanto coloco gelo neste braço partido.
Mais duas semanas e vai fora este gesso que me impede de fazer tantas e tantas coisas, qual delas a mais trivial...
Antes de almoçar, entrara naquela barbearia pela primeira vez. Tinha o cabelo algo comprido e não me fiz rogado.
Simpático e aberto, Isidoro, de seu nome, encontrou no meu braço engessado o motivo para uma longa conversa. Fora enfermeiro na tropa, durante 3 anos em Angola, a coser carne e a salvar muita gente.
Os oficiais bem lhe queriam "ensinar" como deveria fechar uma ferida, tratar uma perna estilhaçada, prestar os primeiros socorros às muitas vítimas que lhe chegavam todos os dias.
Sabia bem o que fazia e quase sempre lhe davam razão...
Tempos difíceis, mas não estava arrependido de nunca ter procurado evitar a mobilização para o Ultramar naquele ano difícil de 1965.
Salvara muita gente, e num jantar de confraternização em que estivera presente, isso mesmo lhe foi recordado.
O Isidoro falava e nem esperava que eu lhe respondesse ou que concordasse ou discordasse.
Excepto quando a realidade assomou ao rumo da conversa. A vida, entretanto, não fora nada sua amiga. O casamento não deu certo e um filho de 29 anos morreu, de repente, deixando-o só.
"Há que aceitar o que aconteceu. A vida é mesmo assim: também com essas coisas que deixam marcas..." - arrisquei.
"Tem razão. Tenho que aceitar..." - adiantou imediatamente. "Se tivesse continuado na tropa, como me propuseram, hoje estaria melhor, com uma reforma jeitosa..."
Isidoro, o barbeiro que nunca vira, falou durante todo o tempo que demorou a cortar-me o cabelo. Fê-lo minuciosamente, com a experiência de muitas anos de profissão. No seu olhar, notei-lhe as rugas duma solidão que não escondia. A tristeza, mal disfarçada, estava ali, presente e bem viva...
Ainda faltam uns lençóis para endireitar com o ferro. O dia está cinzento, lá fora. Paco entra em mim de tal forma que me atira para o sofá, de olhos fechados, completamente extasiado.
"Eu não maldigo esta vida
eu não invejo ninguém
só peço um grão de ternura
do muito que a vida tem"
Outro mundo surgiu nos horizontes celestes, aconcheguei-me no seu colo sereno, e fez-se silêncio...