Recordo que a minha experiência foi diferente de tudo aquilo que li até hoje, também porque foi dividida em duas partes distintas e separadas no espaço e no tempo.
A primeira parte foi experimentada aquando da perda de consciência, na altura em que a enfermeira, apressadamente, me media a tensão e chamava pelo cirurgião, solicitando ajuda.
Não é fácil falar nestas coisas e muito mais difícil é entendê-las. O que procuro reproduzir à luz da nossa razão e à luz dos elementos físicos que nos rodeiam e ainda à luz de como sentimos as nossas emoções do dia-a-dia - o que procuro transmitir por palavras rebuscadas no vocabulário que acumulei em toda a minha vida - é tarefa quase impossível. Não conheço os adjectivos próprios, não consigo definir e explicar aquilo que senti, não encontro nada que possa servir de comparação e que ajude, de qualquer maneira, a fazer-me entender convenientemente.
Falar de dôr, de sofrimento, de paz, de alegria, de angústia, de êxtase - é tão pouco e tão ridículo... Se a paz experimentada era uma coisa maravilhosa, já a dôr era a coisa mais terrível alguma vez idealizada: "só dava vontade querer morrer", mas morrer como, se "morto" já eu me encontrava?...
A verdade, porém, é que nem a este possível pensamento eu tivera acesso...
Rodo os ponteiros do relógio, e provoco uma viagem de regresso ao palco negro das sensações dolorosamente vividas.
Como se o "agora" fosse possível isolar, e trazê-lo de volta... Fecho a mente a tudo o que me rodeia, e deixo “falar” o subconsciente, com a sua linguagem carregada de irracionalidade.
Imagens loucas correm interligadas, em ritmo alucinante. Passivamente, sinto-me sem defesa, possuído por aquele turbilhão, onde a realidade se mistura com o inconsequente, mas sempre onde duas componentes se degladiam: o bom e o mau ou o bem e o mal. Uma luta titânica, onde não posso interferir, limitando-me a ser palco ocupado e indefeso, onde era confrontado friamente com bocados de vida, desordenados na distância, mas perfeitamente sequenciais no antagonismo daquilo que tinha sido bem feito ou mal feito.
Era um desfraldar das cenas da vida, primeiro a má, depois a boa, num contínuo envolvimento e aceitação.
Nada era possível fazer... Elas vinham em catadupa, sem que, pelo pensamento, passasse sequer uma vez a ideia de tentar fugir, alterar, reagir...
Nada se lhe assemelha.
Quase toca o interior do cérebro, onde tudo se submete àquela batalha de situações eternamente ligadas, sem um fim à vista, como se uma catástrofe cósmica se localizasse na mente, e ali decidisse fazer terreiro, sem qualquer hipótese de contestação.
As situações são por vezes concretas, outras vezes denunciam somente algo possuído de mal, que me possui e me inunda duma dôr estranhamente insuportável, violenta, interior; uma dôr que nada tem de física, sem igual para se lhe comparar; uma dôr mental, talvez; uma dôr atrozmente perturbadora; uma dôr que pesa toneladas e que dura uma eternidade; uma dôr que abate, que destrói, que mina tudo e tudo, que se implanta na mente como "algo" que é preciso expulsar, mas que ameaça eternizar-se. E depois, o alívio a chegar, a sobrepôr-se, a dominar, como a cena seguinte do filme que roda, apressado, turbulento, sempre interligado, sem um corte ou paragem para descansar.
No subconsciente desfilam imagens esmagadoras, algo pessoais, passivelmente aceites, passivelmente ajuizadas como boas ou más.
Tudo passado a um ritmo diabólico, sem um fim à vista, onde uma cena rotulada de má provoca a tal dôr estranhamente insuportável, e a seguir outra, esta sim possuída de bem, que alivia e faz sentir melhor; mas logo outra que é facilmente avaliada e faz voltar aquela sensação arripiante , e depois outra e outra, ora boa ora má, sempre em ritmo alucinante, sempre interligadas, onde o alívio se segue à dôr, ou a dôr se abate de novo, e ameaça eternizar-se, dando lugar a um medo profundo de não haver mais coisas boas, de tudo aquilo entrar num rodopio, num loop sem fim, num círculo vicioso.
Era o medo de ficar ali, sem hipóteses de libertação, ligado para sempre àquela submissão horrível de dôr e angústia.
Porque é dôr e é angústia, malparecida com aquela dôr no peito bem funda, que nada tem de física, malcomparada à "nossa" angústia por feitos passados. Esta angústia é sobrenatural, é sobrehumana. É dôr de outra dimensão, é espiritual - é dôr angustiante ou angústia dolorosa.
Mas este estranho momento teve, mesmo, o seu fim.
Terminou, tal como começara, dando lugar a uma sensação de extase, de bem-estar...
Chegara o momento de questionar.
Existia Deus?... Claro, só podia ser!...
O Universo, como era?...
A Vida, a Natureza?...
Tudo "vinha" como se "tudo" já soubesse! Apenas rememorava, tão naturalmente como se apenas existisse essa fórmula única...
O que estava para "acontecer" surgiu com a mesma "naturalidade". Sem palavras, sem ruídos nem murmúrios.
"Queres voltar?"
"Como queres voltar?"
"O que queres?"
"Com que forma?"
Tinha, no entanto, que fazer uma ESCOLHA! Ao nível sentimental e familiar, só "uma pessoa" poderia escolher: "Esta" ou "esta". Assim, sem mais nada! Simples, simples!...
"E o que vai acontecer com "esta" que vou deixar?"
"Não te preocupes. Vai ficar bem!"
Escolhi! Escolhi também o meu aspecto, aquele que tinha, então. Sem qualquer mudança. Voltar à idade de bebé não me agradou, porque iria esquecer "tudo"!
Pedi a reforma do trabalho onde estava.
Escolhi "contar" a experiência. Mas como?... Discursando? Escrevendo?...
"Tens a Internet..."
Nessa altura, ainda eu não conhecia o mundo da blogosfera...