Não foi uma nem duas. Por diversas vezes, quando me deitava, não conseguia adormecer, por mais que tentasse.
Quase junto dos ouvidos, ouvia aquelas vozes ao lado, um grupo de quatro ou seis pessoas que se divertiam jogando o "loto", até de madrugada. Os números das bolas tiradas do saco eram anunciadas em voz alta e aqueles "26", "32", "69", matraqueavam-me os ouvidos. Sentia sono, mas não "pegava" no sono.
Lembro-me também daquele pingo que, lá fora, caía sobre um pano de lona e, dum modo contínuo, desencadeava um "pac...pac" irritante, que me entrava pelos ouvidos e ali ficava, ecoando como um tambor. Eu sentia sono, mas não "pegava" no sono.
Hoje, situações como estas continuam a acontecer, como é evidente. Mas, enquanto que, anos atrás, eu barafustava, irritava-me, impacientava-me - hoje, tento olhar tudo isto de uma forma diferente.
Quando tento adormecer e um ruído vem de fora e me incomoda, só tenho uma solução. Se quero adormecer, terei que ouvir o ruído, compreender o ruído, aceitar o ruído e apreciá-lo.
Se eu quiser adormecer e o ruído (o pingo ou as vozes exteriores) estiverem a incomodar-me, tenho que concluir que não são elas que me estão a incomodar; eu é que estou a incomodar-me por causa delas.
Às vezes é um apito contínuo, incessante. Torna-se irritante ouvi-lo. Não consigo adormecer. A pouco e pouco, procuro ouvi-lo melhor, começo a apreciá-lo, a sentir-lhe a beleza, a contínua sonoridade. Que bonito é o apito! Em vez de lutar para o não ouvir, procuro o que ele me traz de belo, de agradável. Ouço-o no seu encanto, no seu embalo.
Afinal, o tal pingo, as vozes, o barulho do apito, o avião que passa, o vento que uiva por entre as árvores - eles estão lá, a acontecer no seu espaço, no seu momento, no universo onde me encontro também.
Se aceitar, se me deixar enlevar, se os deixar vir a mim e os acolher - eu vou conseguir adormecer, embalado à distância, consciente daquilo que são: apenas ruídos, meros ruídos, acontecendo na comunhão com tudo o resto...